sexta-feira, 11 de abril de 2014

EM FAVOR DOS FAKES

Há uma regrinha de ouro, implícita entre os usuários das redes sociais: a da “sinceridade”.
Quando estamos tetê-à-tête, acreditamos que o outro está ali por inteiro, e, portanto, não tem onde se esconder. No mundo virtual, (não no sentido de “possível, mas não existente”, mas no de “análogo ao mundo ‘real’”) não temos essa suposta garantia – enquanto o rapazola está lá no chat, jurando que conversa com uma moçoila semivirgem, do outro lado da tela está um homenzarrão bêbado e nu. Perfeitamente possível.
Desde o começo da internet, está combinado, então, que o bom usuário deve manter coerência entre aquilo que mostra e aquilo que é na verdade.
Por isso, fazer um perfil fake – deliberadamente passar-se por alguém que tem outro nome, CPF e endereço - ou maquiar o próprio perfil (fazer um fake de si mesmo), são coisas feias. Muito feias. Pecados capitais contra a moral das relações internéticas.
Mas que bela hipocrisia, moçada...
Quem é esse eu-de-verdade cuja presença se cobra nas relações? Existe um ‘eu’ que mora dentro de mim?
A filosofia e a psicologia já tiveram longas discussões a esse respeito. O fato de sermos diferentes a cada momento, e essa impressão de que sempre somos mais do mostramos, justificam pensar numa essência interior?
Por incrível que pareça, não, não e não.
Correntes de pensamento ao longo do século XX (como o existencialismo e a analítica do Dasein) nos levam a crer que somos exatamente aquilo que mostramos a cada momento. Nem por isso somos fake. Somos múltiplos, isso sim.
Somos sempre parciais, e nos mostramos conforme a conveniência. Ninguém é conhecido “por inteiro”, nem pelo pai, nem pela mãe, nem pelos amigos do peito, da facul ou do botequim. Nem por si mesmo.
Numa entrevista de emprego, no motel, no almoço em família, no supermercado – cada pessoa veste inúmeros ‘eus’, que variam conforme as circunstâncias.
Uma indefesa moçoila semivirgem deve morar em algum canto do corpo forte do homenzarrão bêbado. E por isso ele pode decidir trazê-la à tona quando e como achar conveniente. Ele não apenas se passa por ela; ele, de fato, é ela, em algum de seus ‘eus’.
A internet apenas radicaliza algo com que estamos bem acostumados: as pessoas se adéquam aos contextos. Desde que o mundo é mundo, as pessoas têm vidas duplas, triplas, quádruplas. Acontece que, há algum tempo, essas vidas paralelas dependiam de lugares concretos para se expressar: portos, confrarias, clubes, prostíbulos, e afins.
A internet, ao oferecer um novo “lugar” para que o sujeito se expresse de forma livre, permite que ele viva muitos de seus ‘eus’ sentado no conforto de seu sofá.
Todo perfil é a versão parcial e tendenciosa de alguém. Só se revela exatamente aquilo que se quer, e como se quer.
Fracassou na profissão? Decepcionado com o casamento? Hemorroidas inflamadas? Só saberão se você quiser.

Nossa vida na internet apenas dá vazão a mais personagens de nós mesmos, com os quais temos que conviver.

quinta-feira, 10 de abril de 2014

Bacalhau impreciso

Elena Molokhovets:"O bacalhau é a única comida, à parte do pão, que, quando uma pessoa se habitua a ela, nunca se aborrece dela, nem pode viver sem ela, nem nunca a poderia trocar por nenhuma iguaria".

Sempre ouvi dizer que “bacalhau” não é uma espécie de peixe, mas o nome de um método de salga, ao qual são submetidas diversas espécies de peixes, como o Cod, o Ling, o Saithe e o Zarbo. Definição democrática, pois a diversidade de espécies permite que a iguaria seja apreciada por quase todos os tamanhos de bolso.
Pois bem. Parece que a história não é beeeeem assim.
Existe um bacalhau – digamos – tradicional (original), feito do peixe chamado Gadus Morhua, que vive nas águas geladas do Atlântico Norte (esse cara aí embaixo). Para os puristas, só esse pode ser chamado de bacalhau. O resto é peixe salgado genérico, ora pois.


Essa coisa de discutir qual é o “legítimo” é bastante comum na culinária, e envolve da pizza ao molho madeira, do pão de queijo ao vatapá.
Particularmente, acho importante que esse debate aconteça, como forma de preservar o valor do original e da tradição. Eu mesmo tenho meus “tabus”. Como ítalo-brasileiro, por exemplo, não engulo muito bem que se chame um (ainda que delicioso) arroz de forno de risoto...
Mas, quando se trata da degustação propriamente dita, acho que vale mais a experiência, o que faz bem aos sentidos. Nesse aspecto, confesso que a discussão sobre o que seja o legítimo bacalhau não faz muito sentido pra mim. Todos os peixes que se vendem secos e salgados (citados acima ou não) ficam maravilhosos quando preparados da maneira certa.
Essa é a minha receita. As quantidades são apenas sugestivas, é claro. Estando o peixe dessalgado no ponto certo, e usando um azeite de boa qualidade, a quantia de batata pode aumentar quase indefinidamente, sem grande prejuízo ao sabor. Aumentar a quantidade de batata é como “botar água no feijão”. E é assim que se faz comida caseira.


500g de “bacalhau”
500g de batata
1 pimentão amarelo grande
1 pimentão verde grande
2 cebolas médias
4 dentes de alho
2 colheres (sopa) de alcaparras
Azeite de oliva (muito)
Azeitonas pretas
4 ovos cozidos
Água
Cheiro verde

Dessalgue o bacalhau em água, na geladeira (o tempo varia muito, dependendo da grossura do peixe. Se forem postas grandes, tipo 2 dedos de espessura, pelo menos 24h a 36h; se forem lascas, 4h a 6h são suficientes).
Numa panela com azeite, coloque os pimentões e a cebola, cortados em tiras, o alho picado, e as alcaparras. Deixe tudo murchar, mexendo quando necessário. Tire do fogo, adicione as azeitonas e o cheiro verde. Reserve.
Encha a panela de água (não precisa sujar outra) e leve ao fogo com o bacalhau. Quando perceber que está prestes a ferver, retire cuidadosamente o bacalhau com uma escumadeira e reserve.
Com a água já fervendo, coloque as batatas cortadas em fatias finas, até que comecem a ficar macias.
Numa travessa untada com azeite coloque, em camadas, as batatas, depois o bacalhau, e, por último, os legumes e os ovos cozidos fatiados. Finalize com mais azeite, tampe com papel alumínio e leve ao forno pré-aquecido a 200°C por 20 min.


OBS: Depois disso, basta dizer que você pode reservar a água do cozimento do bacalhau para fazer o arroz. É o golpe de misericórdia.

quarta-feira, 9 de abril de 2014

O grito dos maus e o silêncio dos bons: um estudo de caso


Dizem por aí que Martin Luther King Jr. não se preocupava tanto com o grito dos desonestos, dos corruptos, dos violentos ou dos sem ética; o cara se preocupava mesmo era com o silêncio dos bons.

Num bairro de classe média paulistano, duas farmácias disputavam livremente o mercado dos sem-saúde. Adam Smith não imaginaria harmonia maior.
Cada comércio era dirigido por um farmacêutico devidamente habilitado. Em princípio, esse profissional é responsável por orientar e acompanhar os clientes, que chegam com prescrição médica, quanto às formas de utilizar a medicação, possibilidade de efeitos colaterais etc.
Porém, a precariedade dos sistemas de saúde e a cultura brasileira da automedicação faziam com que os clientes pedissem muito mais de nossos personagens. Dor de cabeça, dor nas costas ou espinhela caída, e lá ia o povo procurar um dos farmacêuticos. Eles eram uma forma rápida e fácil de consultar um “doutor”, e tinham a vantagem de já ter à mão o remédio respectivo para cada enfermidade.
Ocorre que, na farmácia A (nomes foram alterados para proteger os inocentes), o “doutor”-farmacêutico era dos melhores. Muito inteligente, se formou numa grande universidade, com ótima colocação na turma, fez pós-graduação, vivia se atualizando. Ele sabia exatamente quais eram suas atribuições profissionais, e resumia-se a elas: “A senhora deve procurar um médico. Eu não posso ‘dar uma olhada’ no furúnculo que nasceu em seu traseiro.”. Com isso, em nome da correção e da ética, frustrava a expectativa de sua clientela.
Na farmácia G, quanta diferença... O profissional não era lá tão brilhante, mas não havia queixa que deixasse passar. “Onde dói? Começou faz tempo?” – e atendia a todos com um largo sorriso, sempre concluindo com duas ou três caixinhas sobre o balcão: “A senhora tome direitinho. Deve melhorar.”. Do ponto de vista ético e legal, era uma farsa e um perigo à saúde pública. Mas o povo o amava.
Tem duas semanas, a farmácia A fechou as portas. Seu farmacêutico procura emprego, e aceita propostas em outras áreas.
A farmácia G?


Vai muito bem, obrigado.
EM COMPOSIÇÃO...

Pra começo de conversa

“E as perguntas continuam sempre as mesmas
Quem eu sou? Da onde venho? E aonde vou dar?
E todo mundo explica tudo:
Como a luz acende, como um avião pode voar
Ao meu lado um dicionário
Cheio de palavras que eu sei que nunca vou usar
Mas agora eu também resolvi dar uma queixadinha,
porque eu sou um rapaz latino-americano que também sabe se lamentar
E sendo nuvem passageira
Não me leva nem à beira
Disso tudo
Que eu quero chegar
- E fim de papo!”
Ou, melhor, e começo de papo. Sejamos bem vindos, sempre.
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Toca Raul!.              Não…

Toca, Raul… Bem melhor.