quinta-feira, 13 de março de 2014

Papinho breve sobre a velha história da vocação...

Este textinho foi primeiro publicado no site do Instituto Gestalt de São Paulo, em 2013. 
Atendendo a pedido (de minha própria vontade), o replico aqui:

Em primeiro lugar, perdoem-me pelo palavrão.
No mundo psi, percebo que a palavra ‘vocação’ não tem mais o prestígio de outrora. Especialistas na área (não é o meu caso) têm preferido falar em ‘orientação’ profissional, retirando o (suposto) significado de algo inato (dom, graça) que o latino vocatio traria. Não por acaso, o termo ‘vocação’ tem ficado, cada vez mais, restrito ao âmbito religioso, onde o caráter de dom / graça não ofende; ao contrário, reforça o sentido da escolha.
Mas ouso discordar desse ostracismo a que condenamos a questão das vocações.
Em latim, vocare era algo como chamar, pedir a atenção. Tem o mesmo radical de Vox, que, sem nenhuma dificuldade, somos capazes de associar à palavra portuguesa ‘voz’.
Veja também que interessante: um sinônimo para ‘palavra’ é ‘vocábulo’ (também derivado do vocare). Sendo um tanto preciosista, alguns dicionários definem vocábulo como “a palavra destituída de seu significado”.
Ora, se despirmos da palavra seu significado, o que sobra? Apenas um som – uma Vox.
Em que momento nos interessa falar em vocação / orientação? No momento de escolher uma profissão, certo?
Errado. Nada mais antiquado que achar que a profissão é algo que se escolhe uma só vez e para a vida toda. Isso fazia todo sentido há algumas décadas, quando profissionais ingressavam numa empresa e ali faziam todo seu percurso profissional, até se aposentarem. Pesquisas em gestão de pessoas mostram que as gerações que hoje chegam ao mercado de trabalho (os tais Y, Z etc.) têm a perspectiva de mudar de emprego entre 10 e 14 vezes até o final de sua carreira. Ou seja, a questão da escolha vai se colocar diversas vezes ao longo da vida profissional desses garotos e garotas.
E aí, o que fazer? Será que uma ‘orientação’, no sentido de investigar interesses e habilidades, para encaminhar sugestões de carreira, basta?
Entendo que não.
De forma precipitada, dividimos as pressões profissionais em duas: internas (aquilo que eu quero, sonho, desejo, me excita etc.) e externas (aquilo que querem, desejam pais, professores, amigos etc.).
Ah, se fosse assim fácil…
De fato, essas duas pressões (bem como seus mais-que-prováveis antagonismos) têm, em comum, uma mesma fonte “interna”.
Quem nunca ouviu um conselho que “entrou por um ouvido e saiu pelo outro”?
Uma “opinião externa” nem sempre se transforma em “pressão interna”.
Nós nos sentimos oprimidos apenas pelas opiniões/ideias que compramos (ou introjetamos, palavra que confesso detestar…). São elas que lutam, em nosso “octógono interior”, buscando supremacia sobre as opiniões/ideias mais primitivas, mais originais, mais….. nossas.
Nossas mesmo, no sentido de propriedade. Aquelas que significam a plena consecução daquilo que trazemos conosco, que somos e queremos ser, que manifestam todo espectro de possibilidades que dão sentido à nossa vida.
Às outras, que vieram de fora, deveríamos pagar royalties. Usamos, mas não são de nossa autoria.
Em outras palavras, em meio à batalha sem fim entre nosso poder-ser mais próprio e as ideias introjetadas (já está me dando comichão…), é preciso atentar e refinar a sensibilidade, de modo a ouvir a voz/vox que nos chama por aquilo que somos, e não por aquilo que “deveríamos” ser. De modo a distinguir aquilo que nos pertence em meio ao ruído de tantas vozes (muitas bem intencionadas, ok…) que não refletem nosso próprio poder vital.
Escolhas que se fazem alheias a esse poder vital, desvitalizam o sujeito – o entregam ao desânimo (falta de anima/alma), à morte em vida.
Nessa aparente “confusão” da singularidade que se manifesta múltipla, e da multiplicidade que se manifesta no singular, damos conta do desafio de EXISTIR.
Como disse Caetano Veloso, em Quereres:
Onde queres o ato, eu sou o espírito / E onde queres ternura, eu sou tesão / Onde queres o livre, decassílabo / E onde buscas o anjo, sou mulher (…) Eu te quero e não queres como sou / Não te quero e não queres como és”
(Meu advogado garantiu que esse pequeno trecho não pode ser considerado uma biografia não autorizada).
Se formos capazes de realizar essa magia, teremos, então, ouvido nossa própria voz interior. Teremos atendido a nossa vocação.

Dedico essa conversa a toda turma do curso de formação em GT, semanal, meus parceiros de divagação às quintas-feiras.