quarta-feira, 16 de abril de 2014

SOBRE UM CONTO DE DUAS SOPAS

Leio com prazer o post de uma antiga companheira de plantão psicológico no Recordar, repetir e elaborar. Já havia lido postagens anteriores, mas nenhuma me chamou a atenção como essa.
Camila conta que sua avó, sabendo que a neta andava adoentada, deu de fazer-lhe uma sopa restauradora. Acontece que Camila, mulher adulta, já fizera, ela própria, uma sopa restauradora.
Na comparação dos sabores, a sopa da vó acabou levando a pior. E Camila se pôs a refletir. E sua reflexão me fez refletir.
Não tenho essa relação com comida de vó. As minhas nunca foram grandes cozinheiras. É como se a súbita materialização de seus pratos sobre a mesa tivesse um caráter burocrático: “come aí, pois tira a fome”.
Minha encantadora de talheres foi minha mãe. Ela, sim, (só depois de casar e por absoluto empenho próprio) aprendeu a cozinhar muito bem. Tornou-se a cozinheira da minha infância, aquela que fez as comidas que servirão como referência para todos os outros alimentos da vida – de um refinado restaurante à coxinha do bar da esquina (“Hum, esse tal de coq au vin está bem gostoso, mas o frango com polenta da minha mãe...”).
Vez em quando, ainda tenho a chance de me refestelar com suas preparações. E continuo achando sua comida a melhor. Melhor que a minha, inclusive. Talvez falte distanciamento. Talvez falte eu aprender a cozinhar direito.
Mas o que queria dizer é que tem algo que me encanta no relato da Camila: ela mudou.
Sim, mudou, e muito. Aprendeu a fazer sopas – não tenho dúvida – deliciosas! Descobriu o segredo alquímico por trás dos temperos e tempos de cocção. Flagrou papai colocando o presente debaixo da árvore de natal.
Mas estou certo de que sua vovó também mudou.
Aos 80, já não enxerga como antes; a coordenação motora trai a intenção; as papilas gustativas não têm a sensibilidade de outrora: vovó já não faz a mesma sopa.
A sopa da infância nunca mais será executada. Falta uma Camila criança; e falta uma avó 30 anos mais jovem.
Portanto, hoje Camila não se tornou apenas mais uma fazedora de sopas, igualando-se à vó.
Camila tomou o lugar da vó na feitura de sopas.
A vó vai deixando de ser a restauradora de gripes por meio de sopas. Agora, é Camila quem fará isso, quando vovó doente estiver.

Então, enlutamos: não quando nos igualamos aos pais, mas quando nos colocamos no lugar deles.

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